sábado, 26 de março de 2011

Aconteceu comigo




Retornamos para casa normalmente como sempre fazíamos.
Todos em silêncio, sem ter o que conversar, o que era natural
entre nós, pois cada um vivia em mundos diferentes. Só mamãe
que dormia profundamente, demonstrando seu estado de embriaguez
e seu marido cantarolava baixinho.

Chegando em casa fui direto para o quarto, tomei banho (com o
marido da mamãe gritando para que eu me apressasse) e fui para
o quarto dormir. Percebi que Eleonora, minha irmã mais velha, chorava baixinho, aproximei de sua cama e lhe perguntei o que havia, ela se voltou para o meu lado e disse tristemente que era melhor eu cuidar da minha vida, pois minha hora não ia demorar. Pensei o quanto era difícil amadurecer. Meus irmãos já não eram os mesmos e normalmente viviam irritados, sempre arranjavam pretextos para ficarem longe de casa.

Horas passaram e envolvida com os meus pensamentos, não conseguia dormir.

Foi quando, para minha surpresa, a porta do quarto abriu. Fechei os olhos e fingi dormir, até hoje não sei o que me levou a fazer isso. Talvez se eu tivesse feito qualquer coisa naquele momento, não teria acontecido os horrores porvir.

O marido da minha mãe entrou quase sem tocar no chão, parecia que flutuava e aproximou da minha cama chamando meu nome. Morrendo de medo, procurando não fazer barulho nem ao respirar, não lhe respondi, então ele foi para a cama da minha irmã.

Eu ouvia o choro dela, os pedidos para que se afastasse, enquanto ele gemia e ofegava como um porco. Demorei alguns minutos para cair na realidade e sair do estado de choque que me encontrava. Quando percebi o que acontecia, sentei na cama e gritei pela mamãe. Ele deu pulo em minha direção e falou, de uma maneira tão agressiva que mais parecia estar rosnando:

- Faça qualquer coisa, qualquer barulho, acorde seu irmão que ele sofrerá as consequências e a sua mãe irá para cadeia por negligência. Foi até bom você acordar, pois já está na hora de ser tratada como mulher.

Eu percebi horrorizada que realmente ele era capaz de cometer qualquer ato insano. Não havia nos seus gestos nada que demonstrasse piedade, mas uma frieza que me cortou por dentro. E naquele momento percebi que ele estava descontrolado e que qualquer palavra despertaria uma fúria maior ainda.

Ele veio para minha cama e jogou seu corpo soado sobre o meu, eu estava presa e sentia o peso do seu corpo me sufocando. Enquanto uma de suas mãos me machucava tentando abrir minhas pernas a outra tapava minha boca. Eu me debati, mordi sua mão, então levei um murro e desacordei.

Foi questão de segundos, quando abri os olhos estava com as mãos amarradas na grade da cama, sem roupas e com a boca vedada. Sentia uma angústia misturada com medo e ódio. Cadê aquele anjo da guarda que tanto se falava na igreja? Cadê meus pais que tinham por obrigação nos proteger?

Então lembrei da minha irmã. Olhei para Eleonora, ela estava virada para o canto, chorando baixinho, encolhida na sua cama, como se não quisesse enxergar o que acontecia.

Pela primeira vez, eu realmente a amei, pois ali, naquele momento triste, eu compreendia toda sua amargura e a dor do seu amadurecimento.

Enquanto ele abria minhas pernas, passava sua língua nos meus tenros e pequenos projetos de seios, percebia sua língua molhada que estava deixando marcas indeleveis no meu corpo, então meu estômago começou a doer e eu sentia vontade vomitar, além do mais tocava minha vagina com seus dedos, machucando e me causando um desconforto imenso, falava palavras nojentas no meu ouvido:

- Eu vou saborear devagar, gata selvagem, nós temos a noite inteira. E não me olhe assim, não sou pior que seu pai, pergunte a sua irmã quem foi o primeiro a mostrar essas delícias para ela?

Foi uma punhalada, não sei porque mas eu acreditei nele. Talvez por achar a justificativa para o desaparecimento repentino do papai e por ser uma explicação para o comportamento estranho de todos. Não sei o que mais me machucava naquele momento, se era sua revelação ou o que estava acontecendo, mas de uma coisa tinha certeza, jamais seria a mesma.

Naquela altura nem sentia mais o que acontecia, entrei em estado de choque e na minha mente só imaginava o papai maltratando assim minha irmã. Pobrezinha, como deve ter sido grande a sua dor! Eu sentia meus valores desmoronando. Que Deus é esse que permite isso acontecer?

Lembrei de todas minhas estripulias, mas nenhuma justificava tamanho castigo.

Ele forçou a entrada na minha vagina, eu nem conseguia sentir dor. Não entendia aqueles movimentos alucinados e nem reconheci aquele homem que transfigurado parecia querer sugar tudo de mim. Com horror percebi que seus dedos abriam caminho nas minhas nádegas. Depois de algum tempo senti o seu corpo extenuado estremecer, não sabia o que acontecia, mas percebi que estava saciado, pois sua fisionomia voltava a ser a de sempre, velha conhecida.

Achei que a tortura tinha terminado, no entanto ele escorregou sobre o meu corpo e começou a limpar o sangue que escorria, com a própria lingua, acho que era para evitar qualquer mancha no lençol, como era grande o meu nojo!

Quando tudo realmente terminou, eu olhava dentro dos olhos dele, com tamanho ódio que pesava na minha alma. Desejei sua morte, desejei a minha morte. Blasfemei. Amaldiçoei a vida e todos que me ensinaram os valores que norteavam a conduta humana. Era tudo mentira. As pessoas são más, insensíveis e têm prazer em destruir nossos tesouros íntimos. Agora eu entendia porque a mamãe se embriagava. Era para fugir da responsabilidade de enxergar o que acontecia debaixo daquele teto. Eu a desprezava literalmente, pois seu comportamento era para não perder a presença masculina na sua cama.

Mergulhada na minha indignação quase não ouvi quando, antes de sair, ele olhou para Eleonora e depois para mim e falou ainda ofegante:

- Abram a boca, que a mãe de vocês sofrerá as consequências. Ela é cúmplice e está lá quentinha me esperando. Agora vou fazer a minha obrigação de marido, hoje vocês me cansaram muito!

Ouvindo o barulho da porta fechar, eu comecei a chorar convulsivamente. Não sabia o que pensar. Queria morrer, só isso vinha na minha mente.

Eu sentia dor no corpo inteiro, Eleonora veio rapidamente e me desamarrou, nós nos abraçamos e ficamos assim, chorando baixinho por muito tempo. Foi a primeira e verdadeira troca de afeto entre nós.

Agora eu entendia sua amargura, conseguia avaliar os seus momentos de indiferença perante as pessoas e a vida. Ela me levou para o banheiro e tomamos banho. Tudo em profundo silêncio, pois não haviam palavras que pudessem expressar nossos sentimentos.

Ali terminava a minha infância, nos meus dez anos de idade.

(trecho extraído do meu livro, ainda não publicado, que tem como referência a denúncia da pedofilia)

Mel L Frankust
Publicado no Recanto das Letras em 04/08/2007
Código do texto: T593136